sábado, 29 de setembro de 2007

Passagem - O Casamento

*Só mais uma coisa que me apareceu durante uma aula de Teoria II*



A dor no peito era tão forte que distorcia sua imagem no espelho.


- Venha, querida.

Ela olhou, magoada, para a porta; fechou os olhos com força e só depois voltou para encarar o cômodo em que se encontrava.

Havia algumas cadeiras e mesinhas de cor escura mais ao fundo; tudo tinha sido arrastado às pressas para dar lugar aos pertences da noiva. As grandes caixas – onde antes estivera o lindo vestido perolado – agora estavam vazias. Ninguém se dera ao trabalho de arrumar a bagunça. Pedaços de linha, retalhos, alfinetes no chão. As mulheres saíram correndo rindo alto, lançando um último olhar curioso à jovem noiva, e foram para a igreja esperar.

- Venha, querida.

Esperar.

Esperar porque as noivas sempre se atrasam. E a noiva estivera sozinha num cômodo nos fundos da igreja, na tentativa de não esperar demais...

- Venha, querida.

O espelho era grande, dava para ver o corpo inteiro refletido. E ela agora via com amor os detalhes mínimos daquele vestido tão querido. Como se cada pérola, brocado e lantejoula fosse na verdade um pedaço daqueles que esperavam lá fora.

(Esperar demais?)

- Venha, querida.

A voz agora estava mais firme. Mas não demais. A noiva deixou os olhos se encherem de lágrimas. Torceu as mãos com força, mas no fim não conseguiu suprimir mais o soluço. A mãe tinha dito para não chorar, para não borrar a maquiagem. “Deixe para chorar no altar, querida – ela dissera – segure bem, porque toda noiva fica emocionada mesmo”. Tentou engolir o choro com força, mas não conseguiu. Era grande demais.

- Venha, querida.

Pensou no noivo que já devia estar à sua espera no altar. No altar que tinha fitas brancas, como ela escolhera. O noivo não merecia que ela fosse daquela maneira. Não, não merecia.

O reflexo no espelho era uma imagem linda. A noiva no centro, com seu vestido imaculado, o buquê na mesinha logo atrás, a tiara relusindo...

- Venha, querida.

Ela soluçou alto mais uma vez, agora pensando no pai. Com quem ele entraria na igreja? Não, ele também não merecia aquilo. Não merecia.

- Venha, querida.

Era um sonho que ficava no espelho. Um instante congelado do que poderia ter sido. Respirou fundo. Não queria chorar numa hora daquelas.

- Venha, querida.

“Eu te amo”. Foi o último pensamento e o enviou ao noivo do altar de fitas brancas.

- Venha, querida.

Ela foi.

A morte, afinal, era doce e mansa, como embalo de berço.






sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Um sentimento



Now it´s three in the morning and you´re eating alone

Oh the heart beats in its cage


- Heart in a cage - The Strokes

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Assim como Liesel

Eu pensei que não escreveria sobre esse livro tão cedo, mas acho que algumas coisas estão além do meu controle. Uma delas é a minha Vontade de escrever. Vontade com letra maiúscula, porque ela tem vida própria...

Tudo bem que a Vontade não veio do nada - como muita gente inocentemente acredita por aí -, mas não deixou de vir inesperadamente. E isso tudo por causa de dois segundos numa tela de televisão. Pois é, era o Markus Zusak na bienal do livro; meu pai gritou e eu fui correndo ver. Nâo sei porquê, mas foi uma imagem tão bacana... O Zusak lá com aquela cara de bom rapaz, um monte de gente em volta, a promoção do livro logo atrás... A Vontade não chegou naquela hora, claro que não - criaturinha voluntariosa ela é - mas ficou pregada na minha orelha, falando baixinho. E agora ela resolveu gritar... então aqui estou.

A menina que roubava livros é envolvente. Nâo tem outra palavra para descrever. Você começa a ler, estranha de início, e depois é completamente absorvido pela atmosfera mágica que esse livro cria. A história se passa na Alemanha Nazista como tantas outras, mas tem seu toque especial. A narrativa é fragmentada, cheia de idas e voltas. A ordem não é cronológica. A Morte - narradora de todos os eventos - acaba se tornando mais uma das personagens com seus comentários vivos (ironicamente) e pontuais. As personagens... ah, as personagens são a alma do livro! Merecem um parágrafo à parte...

Todos eles são bem construídos, complexos naquela atmosfera de simplicidade da Molching. O casal Hubberman, a mulher do prefeito, Max, os Steiner... os Steiner. Isso me faz ter que falar de Rudy. Meu favorito. Rudy é... Rudy. Simples, decidido, com muita força de vontade. O namorado que a menina nunca teve, é um título lindo para ele. Acho que não é possível alguém ler A menina que roubava livros sem cair de amores por Rudy Steiner. Por sua humanidade. Pelo modo de como ele se aproxima tanto de nós... e de Liesel. Liesel Meminger, a menina que roubava livros. Que encontrou a morte de três formas tão impactantes, que a própria Morte resolveu contar a história dela.

Eu me impacientei um pouco com as palavras em alemão de início, mas depois percebi que não havia vocativo melhor para alguém naquele livro que não fosse Saurkel... Engraçado como a gente consegue entender uma outra língua sem realmente saber essa língua. Bacana como isso foi mostrado no livro. Faz parte da própria narrativa. Faz parte do ritmo da história.

Interessante também é o modo de como a história se constrói de outras história. É um livro contado por alguém que leu outro livro (no caso, a Morte é quem lê); e este livro, por sua vez, foi escrito originalmente por Liesel, baseada no livro de Max. Planos interessantes, não? Isso sem levar em conta os planos das personagens mais secundárias...

Podem dizer o que quiserem, mas A menina que roubava livros é literatura da melhor qualidade. Se teve um final típico e cliché, se foi o reconto de uma realidade, se criou personagens apenas para cumprir uma função emocional, se foi ruim por qualquer desses argumentos - ou outros - de teóricos literários, não importa. Isso aqui é literatura da nata. Mostra o melhor da humanidade, o melhor do ser humano e de uma forma naturalmente verdadeira, tão nitidamente verossímel. Literatura.

É um texto fragmentado, mas não consigo imaginar outro modo de falar sobre este livro. Só quem lê sabe. Além do mais, a Vontade é feita de algumas nuances que às vezes a gente não entende... A Vontade é fragmentada lá à seu modo. Conta suas histórias do jeito Dela.

Assim como Liesel.




quinta-feira, 6 de setembro de 2007

A Torre Negra de King

*Sem spoilers, pode ler sem medo*




Stephen King diz ter concebido o que viria a ser o início da série A Torre Negra aos 19 anos. 19; o número-chave da série. E o número de vezes em que você provavelmente não vai conseguir dormir, porque além da angústia-regra que produz cada livro de King, esse, em especial, leva o nosso pensamento longe e podemos sentir que somos parte da companhia de Roland de Gilead, o último pistoleiro, rumo à lendária Torre Negra - eixo de todo tempo e espaço.

A história é ambientada numa espécie de mundo pós-apocaliptico, mas com claras influências medievais. Influência, aliás, é o que não falta nessa série e King não as nega. Na contra-capa da edição brasileira e no prólogo dos volumes da série podemos ler com todas as letras "baseado no poema ´Childe Roland à Torre Negra chegou´ e no universo de J.R.R.Tolkien". E não pára por aí. Temos referências à lenda de Rei Arthur, músicas dos Beatles tocando em pubs em bares duvidosos no meio do deserto, bandidos malvadões com máscaras de vilões da Marvel e referências mil à cultura contemporânea geral. Só mesmo alguém como King para ter a coragem de admitir que não bebeu da fonte, nadou na fonte, e com a água batizou seu novo mundo de Mundo Médio. Sugestivo, não?

Ah, mais que isso são as ligações que King faz com suas outras obras e com sua própria vida. A série A Torre Negra é uma miscelânia de lugares, personagens, fatos e ironias deliciosamente agudas; daquelas que fazem o leitor de outros livros do autor rirem de orelha a orelha. A série é realmente a grande obra de King, não por ter levado décadas para ser escrita, mas porque contém em seu universo todos os outros do autor.

O primeiro volume, O Pistoleiro, nos apresenta o herói (herói?) da história, Roland de Gilead, um personagem que poderia ter saído de um filme faroeste clássico. Roland está na cola do Homem de Preto (ah, isso não é um spoiler, é a primeira linha do livro rs), uma busca menor dentro da grande ambição de sua vida que é chegar à Torre Negra. O mundo de Roland está deteriorado a tal ponto que tempo e espaço já não são mais os mesmos. A salvação pode ser a Torre. O livro é bem imaturo e a escrita é estranha, algumas idéias não são bem conectadas; mas a história já começa a envolver. Vale a pena ter força de vontade e seguir até o primoroso fim. Não vão se arrepender.

Em A Escolha dos Três, o segundo volume da saga, Roland - um andarilho solitário por natureza - descobre que precisa trabalhar em grupo. E é aí que conhecemos Eddie Dean - um viciado em heroína da Nova York dos anos 80, Odetta/Detta/Susannah - uma esquizofrênica negra sem as duas pernas da Nova York dos anos 60 e Jake Chambers - um garoto de 12 anos (que já havia sido companheiro de Roland em outro mundo...) da Nova York dos anos 70. Juntos eles formam Ka-tet (um de muitos) e descobrem como suas vidas estão intimamente entrelaçadas com o caminho da Torre.

Terras Desvastadas, o terceiro volume, é simplesmente maravilhoso. Aí sim temos King em sua melhor forma e já bem mais maduro. Diferente dos outros volumes anteriores, esse é devorável e repleto de ação. Com sacadas bem inteligentes e personagens maravilhosamente descritos. Os conflitos são sensíveis e os vilões reais começam a dar as caras.

O quarto capítulo, Mago e Vidro, narra o passado do pistoleiro Roland de Gilead. Esse livro é arrepiante. A série volta à adolescência de Roland, à sua primeira missão numa cidadezinha chamada Mejis e à uma moça chamada Susan Delgado. Apesar de delongar demais em alguns detalhes e chegar a entediar, quando o circo pega fogo na história pega fogo mesmo. Os conflitos já não são mais internos; quando chegamos ao final do livro, é difícil saber quem está certo e quem está errado. Além disso, é um divisor de águas na série.

Lobos de Calla é cheio de respostas (mas de lambugem, vêm mais um milhão de perguntas). O ka-tet vai para a estranha cidade de Calla Bryn Sturgis e mais uma vez os conflitos internos se soprepõem aos externos. A trilha para a Torre começa a ser mapeada, mas como tudo mais em King, sempre falta alguém para ler o mapa. A aparição sensacional de um personagem de outro livro de King dá um sabor especial a essa história.

O sexto volume é intulado a Canção de Susannah. O desenvolvimento do volume inteiro dá-se no breve período de um dia. Surpreendente, chocante, eletrizante, aterrorizante, angustiante e mais um bocado de outros -ante por aí, o livro é surpresa atrás de surpresa do início ao fim e está repleto das sacadas das mais geniais. Vale a pena ler a série inteira só pra chegar nesse ponto da história.

A Torre Negra é o volume que encerra a série, mas eu ainda não li. O motivo direto é porque ainda não tive tempo (leia-se dinheiro); e o indireto é porque quero saborear ainda mais um pouquinho essa série. Confesso que me surpreendi muito, muito mesmo, com esses livros. Não que duvidasse da capacidade do ´Tio Stevie´ de criar boas histórias, mas porque há uma filosofia bem composta e cadência de idéias impressionantes nesse novo universo. Ao mesmo tempo que é atual com suas incontáveis referências ao "nosso mundo", a ´Torre Negra´ retoma o sabor das narrativas fantásticas clássicas, do mundo do extraordinário. E essa mistura do contemporâneo com o fantástico é que dá o toque especial.

A ´Torre Negra´ é o eixo do tempo-espaço, mas também é o eixo central da obra de King; e porque não dizer eixo de todas as narrativas de fantasia e do pensamento do mundo contemporâneo? Oras, como diria Jake Chambers, há outros mundos além desse.

E essa série de King, como um desses mundos, vale a pena ser lida.