domingo, 29 de julho de 2007

Nublada Existência

*Saído direto da minha cabeça*

Ele precisava dizer aquilo. Colocar pra fora aquela coisa que batia dentro dele como um tambor descompassado. Era tão mais fácil nos filmes... Nos filmes o herói confessava depois de um grande momento de glória, olhava dentro dos olhos da mocinha e, se desse sorte, ganhava mais que um beijo. Mas aquilo não era um roteiro de cinema, era a vida real. E as coisas são mais difíceis na vida real, porque se errar, não tem como rodar a cena de novo...

O nome dele era Don. Deixava os cabelos caindo desajeitados por cima da testa, não por estilo ou qualquer outra coisa assim, mas porque tinha preguiça de pentear. Usava uma camisa que parecia grande demais para ele e tinha a mania de usar tênis dentro de casa. Os olhos eram castanhos, vivos e grandes; e possuíam aquele brilho indefinido, pouco comum em garotos da sua idade.

Don deu uma olhada para uma mancha escura no teto do quarto. Quando pensava em alguma coisa com mais profundidade do que supostamente deveria, encarava a mancha inconscientemente. Como se ela pudesse lhe dar alguma resposta. Como se dela fosse de repente sair alguma coisa fantástica e dizer: “Parabéns, Don. Seus problemas acabaram!”.

Balançando a cabeça, sentindo-se extremamente patético, Don abriu a gaveta da escrivaninha lentamente.

- Don, desce aqui embaixo! Se demorar, vai ficar sem lanche!

Era a mãe. Desejou que ela tivesse feito bolo. É, bolo seria bom. Só agora percebia o quanto estava com fome.

Pegou o caderno de capa vermelha que estivera aberto em cima da escrivaninha e guardou-o dentro da gaveta, dentro de uma inocente e digna revista de carros com data de publicação do ano anterior. Assim, não chamaria atenção de Martin ou de qualquer um de seus outros amigos. Era o único modo de ficar seguro. Achava que não suportaria se alguém descobrisse o conteúdo daquele caderno de capa vermelha. Não, provavelmente não suportaria. E sumiria da cidade caso isso acontecesse. Ninguém, no mundo inteiro, jamais saberia que Don escrevia poesia.

Poesia.

Aquilo já vinha acontecendo há um tempo, desde uma aula de literatura particularmente tediosa da Sra. Shaw. Com aquele sotaque bizarro, a velha discursava sobre métrica, sobre pentâmeros e alexandrinos e sobre gente que já estava morta há muito tempo. Depois de quinze minutos de prelação, Don perdeu a batalha para o ócio e passou a dedicar a ele o tempo restante da aula. Então, uns quinze minutos antes de tocar o sinal, a Sra. Shaw – o sotaque mais forte do que nunca tamanho o entusiasmo – mandou que os alunos escrevessem um pequeno poema, tentando “à medida do possível, claro, utilizar os elementos que discutimos hoje”. Quando a classe ameaçou um protesto, ela acrescentou depressa:

- Visto no final da aula!

Martin mandou uma bolinha de papel na nuca de Don e os dois começaram uma discussão sobre as possíveis atividades da tarde. Estava empolgado com a perspectiva de dar uma caminhada no centro e jogar futebol, quando sentiu aquele cheiro de naftalina do vestido da Sra. Shaw. Virou-se para o lado oposto e deu de cara com a própria professora, que exibia nos olhos aquele olhar insano faça-a-droga-do-exercício-ou-juro-que-estouro-seus-miolos. Don não ousou discutir; a mãe e o pai lhe arrancariam as tripas caso se metesse em outra confusão.

Encarou as linhas azuis do caderno.

- Odeio essa aula, cara – ele ouviu Martin sussurrar atrás dele.

- Eu também – respondeu Don e antes que a Sra. Shaw pudesse encontrar motivo para se aproximar de sua carteira, começou a escrever alguma coisa.

Escrevera rápido e sem dificuldade. Quando releu o que havia escrito percebeu, horrorizado, que seu poema tinha todas aquelas qualidades que a professora havia pedido. Métrica, rima, fluidez. Sem saber o que era pior – saber o que significava aquelas palavras ou aplicá-las num trabalho sem saber – fez a única coisa que lhe pareceu sensata no momento: apagou o poema furiosamente.

Ganhou um zero redondo pela atividade.

Mas aquela experiência estranha não parecia querer deixá-lo tão cedo. Quando chegava em casa à tarde, suado e melado de um jogo de futebol ou de uma corrida de bicicleta na avenida, começava a pensar sobre velocidade, sobre liberdade e sobre glória. E aqueles pensamentos irritantes explodiam sua cabeça e ele só conseguia se livrar deles quando os escrevia. O caderno de capa vermelha, encontrado embaixo da cama, não demorou a ser a cura de suas terríveis dores de cabeça.

A coisa não parou. Quando ia ao shopping com os amigos olhar as garotas bonitas, chegava em casa e escrevia sobre labirintos sem fim, sobre efemeridade (Raios, ele sabia o que uma palavra daquelas queria dizer!), sobre sentimento de perda. Quando dava uma volta de carro com o pai escrevia sobre os tons de verde do campo, os pássaros que voavam livres na imensidão do céu e a gaiola que era sua própria realidade. E claro, quando via Lola escrevia furiosamente sobre sol, solidão, medo, angústia e melancolia. Se algum de seus amigos descobrisse... Se eles suspeitassem... Engoliu seco, saiu do quarto e desceu as escadas.

Aquilo era coisa de bicha. Não era coisa de garotos normais de dezesseis anos. Que seria de sua reputação se alguém soubesse que ele versava sobre todas aquelas coisas, sobre todos aqueles vazios, sobre a existência nublada de sua vida? “Existência nublada... Vou guardar essa para depois...”. Teve uma súbita vontade de cair da escada e quebrar o pescoço com o pensamento.

- Doooooooooooooooooooooooon!

- Eu já to indo, mãe! Que coisa! – bufou ele, andando mais rápido até a cozinha.

Por que ele? Por que? Dentre todos os garotos do mundo, ele tinha que pensar naquilo tudo? Será que aquela coisa nunca mais o abandonaria? Será que ele passaria o resto da vida pensando ritmado? Cheio de viadagem? Era uma merda. Não havia outra palavra para expressar; era uma grande merda. E provavelmente iria enlouquecer. Ia sim. Iria enlouquecer a medida que aquele maldito caderno de capa vermelha era preenchido...

- Puta que pariu, viu... – xingou baixinho assim que chegou na cozinha.

- Olha a boca na minha cozinha, moleque! – repreendeu a mãe.

- Desculpa, mãe – ele disse rápido, puxando a cadeira do balcão.

- Você e seu pai... Essa mania horrorosa de se expressar com as piores palavras da face da Terra! Ainda mais na frente de visita...

- Desculpa, mãe – ele repetiu, sem prestar muita atenção. Estava com fome. E tinha bolo.

- ... eu realmente peço desculpas, querida.

- Não tem problema não, dona Arminda.

Don estacou. Estava mesmo com fome? O bolo de repente lhe parecia desinteressante. O mundo parecia desinteressante. A cozinha tinha de repente ficado mais escura... Ele se virou, tremendo idiotamente, e a encarou. Ela.

Era ela. A única coisa realmente iluminada. O sol, mas com aquele brilho místico das estrelas. Aquela certeza determinada que sorria nos olhos, a delicadeza que ela habilmente escondia por trás daquela pose sarcástica... Não havia muito a dizer sobre ela, não havia como descrevê-la. Deixar a mente vagar pelas verdades escondidas por trás daquela garota... Se o coração batia dentro de uma gaiola, como diziam os Strokes, então ela tinha a chave. Ela tinha que ter. Para poder arrancá-lo daquilo tudo. Pois não haveria paz, não haveria sono, não haveria nada em sua vida sem aquela presença iluminada em meio às trevas. De nada valeria sua alma, ele já a tinha leiloado. E ao que parecia, aquela garota ali na frente foi quem fizera o lance mais alto. Aquele pânico involuntário, aquela sensação indesejada, não era nada menos que a expressão física de algo que foi perturbado em águas mais profundas. Na existência nublada.

Don estremeceu.

Ele era um artista, santo Deus! E era danado de bom.




2 comentários:

Anônimo disse...

Esses personagens que negam seus talentos são curiosos, né? Eu reconheço essa atitude do Don em muitos outros personagens, inclusive meus. Lembra do Soren? O que folheava os livros, porque não podiam saber que ele lia? Tem também a Samira, mas você não a conhece ainda, ela é a gêmea da Aretha, do Camafeu.

Aqui,não sei porque você ficou tão ansiosa pra eu ler o seu conto; se era medo de eu não gostar, você é uma abóbora, mesmo! ¬¬ Claro que em alguns momentos eu não reconheci a sua escrita, como na "existência nublada". Mas no "Poesias." Era você mesma! É engraçado, Mel, mas eu acho que a sua escrita tá numa fase de transição. A jornada de Melissa pra ser cânone! Tomara que você continue minha amiga depois que chegar lá!

# Anny O. disse...

Oi Melissa... Bom, sou uma nova freqüentadora de seu blog e já me apaixonei. Se não se importa, usei seu texto em homenagem ao Fred Weasley para o primeiro post de meu blog. Adorei a história de Don.
Sua criatividade e cultura são extremamente ótimas. Seu talento com a escrita é maravilhoso.
Também estou ansiosa por fanfics de Harry Potter, pois são livros que tenho o prazer de ler.

Beijos
BY: Anny O.